Multipropriedade x FIIs: como destravar os cofres dos fundos imobiliários

O que falta para a multipropriedade conquistar a confiança dos investidores e transformar potencial em capital real

Os fundos imobiliários desejam projetos com potencial e lucrativos, mas que também sejam transparentes e bem estruturados

O dinheiro está lá. Mais de 200 bilhões de reais circulando entre mais de 500 fundos de investimentos imobiliários – FIIs – listados na bolsa de valores e quase três milhões de cotistas, de acordo com dados da B3,  e um apetite cada vez maior por ativos sólidos. Mas, para a multipropriedade, essas cifras ainda parecem estar atrás de um cofre blindado. 

Apesar de consolidada dentro do segmento imobiliário turístico, com projetos entregues e em operação, regulamentada pela Lei 13.777/2018 e apresentando resultados robustos e consistentes, nos últimos anos, as portas fechadas dos fundos imobiliários para os projetos de multipropriedade estão dificultando muito busca de funding e, consequentemente, a finalização das obras.

Há alguns anos, antes da Lei da Multipropriedade entrar em vigor e até um pouco depois da pandemia de Covid-19, fundos imobiliários demonstraram interesses na multipropriedade, atraídos por aquele negócio que apresentava VGV (Valor Geral de Vendas) bilionário, com crescimento exponencialmente, apresentando recordes atrás de recordes de vendas, mas, ao mesmo tempo, com baixa reputação, muitas reclamações de clientes e alta taxa de distratos.

A multipropriedade ainda tem muito potencial e continua com sua curva de crescimento, com novos incorporadores lançando projetos e mais clientes/proprietários comprando frações imobiliárias. O estudo Cenário de Desenvolvimento de Multipropriedades no Brasil 2025, elaborado pela Caio Calfat Real Estate Consulting, apontou que o mercado de multipropriedade atingiu um VGV potencial de R$ 92,7 bilhões, com 216 empreendimentos mapeados em 97 cidades de 18 estados brasileiros.

Nunca foi fácil para os incorporadores de multipropriedade fecharem negócios com fundos imobiliários. A operação mais comum utilizada pelo mercado é o CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários). Os primeiros projetos que realizaram CRI, ainda antes da Lei da Multipropriedade, tiveram que concordar com taxas, condições e garantias elevadas. Alguns não conseguiram honrar os compromissos com os fundos, o que talvez, hoje, pesem na análise de riscos nas novas negociações. 

Porém, com o grande potencial da multipropriedade e o crescimento dos FIIs, as portas dos cofres estão fechadas, mas não trancadas. O impasse não é de falta de oportunidade — é de confiança. Os fundos imobiliários desejam projetos com potencial e lucrativos, mas que também sejam transparentes e bem estruturados.


Atratividade dos Fundos Imobiliários

De acordo com Alejandro Moreno, vice-presidente de Turismo da ADIT Brasil (Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil), a multipropriedade, assim como outros modelos de propriedade compartilhada, normalmente não seria um produto de grande apelo para o mercado financeiro tradicional no Brasil. Porém, em períodos de maior liquidez, surgem oportunidades e o setor chega a ganhar espaço, como ocorre em países como México e Estados Unidos, onde há inclusive bancos que financiam tanto empreendimentos quanto carteiras de direitos de uso. “Entre 2017 e 2021, observamos um interesse maior dos fundos, que passaram a enxergar a multipropriedade como um ‘residencial a prazo’, com spreads atrativos, vendas indexadas e lastro imobiliário”, contextualiza ele.

O head de Real Estate da CVPar Business Capital, holding de investimentos com operações financeiras na multipropriedade, Irapuã Dantas, confirma que o mercado de fundos imobiliários ficou muito interessado nos projetos fracionados há alguns anos, por conta do rápido crescimento do segmento e dos VGVs apresentados, principalmente após a Lei da Multipropriedade entrar em vigor. Porém, os FIIs avaliavam (e ainda avaliam) algumas pontas soltas na estruturação dos projetos, como no caso do VGV não corresponder à realidade do metro quadrado da região onde o projeto está localizado. “É uma operação alavancada por natureza, pois praticamente se multiplica o valor do metro quadrado do imóvel naquela região e, normalmente, os FIIs trabalham em média de 60% a 70% do valor do imóvel como razão de garantia”, explica o executivo.


Inadimplência e projetos pouco estruturados afastas FIIs

Para Jair Lemes, da Brava Capital, gestora atuante em negócios de multipropriedade, alguns FIIs se distanciaram do segmento por uma combinação de fatores estruturais e conjunturais. “Houve episódios de inadimplência e desafios operacionais em alguns empreendimentos que geraram insegurança jurídica e financeira. Além disso, a falta de padronização nos modelos contratuais e de governança dificultou a avaliação de risco e a estruturação de produtos financeiros escaláveis. Isso reduziu o apetite de investidores institucionais, que passaram a priorizar ativos com maior previsibilidade e liquidez”, justifica Lemes.

A ADIT Brasil elenca três fatores que contribuem para os fundos imobiliários abandonarem o interesse pela multipropriedade:

  • Custo de capital elevado – A taxa Selic saltou de 2% a.a. (2020) para patamares próximos a 15% a.a. (2024/25), tornando os financiamentos pós-fixados inviáveis e comprimindo as margens dos incorporadores.

  • Percepção de risco operacional  Mercado em amadurecimento – Carteiras ainda jovens, com longos prazos de recebimento, enfrentaram inadimplência, cancelamentos e distratos. Sem tanto histórico consolidado, o mercado passou a exigir um prêmio de risco maior.

  • Atrasos e aumento de custos – Desafios do mercado imobiliário –  O choque inflacionário pós-pandemia elevou os orçamentos de obra em até 40% do VGV, impactando cronogramas e descaracterizando a dívida como autoliquidável no prazo previsto.  

‘’Como resultado e de se esperar em momentos agudos, os recursos migraram para classes de menor volatilidade, como logística, renda urbana e CRIs pulverizados. A multipropriedade, portanto, está momentaneamente em compasso de espera até comprovar entregas consistentes, qualidade de carteira e governança sólida’’, completa Alejandro Moreno.

O CEO do Hot Beach Parques & Resorts, Sérgio Ney Padilha, que já realizou uma operação de CRI para concluir a obra de seu primeiro empreendimento, o Hot Beach Suites, e estrutura para realizar mais um CRI em seu segundo projeto, que está em construção — o Hot Beach You —, compartilha da opinião de que o mercado financeiro nunca deixou de se interessar pelo negócio de multipropriedade. 

“Trata-se de um setor atrativo, legalmente regulamentado, de grandes volumes e bons retornos aos investidores, desde que bem planejado e executado. Entretanto, gestões temerárias pontuais – de ambos os lados da mesa – traumatizaram o mercado lá no início, com más repercussões que demoram a se dissipar”, afirma o executivo. “O que se observa é uma maior seletividade por parte dos investidores, o que tem contribuído para o aprimoramento dos modelos de negócio e para a elevação do nível de profissionalismo no setor”.

Apesar das questões ligadas à inadimplência que ocorreram, o diretor de Novos Negócios da CVPar reforça que os FIIs não estão totalmente fechados para a multipropriedade. “Não fazem mais negócios os fundos que estão com problemas. Tem várias operações de multipropriedade em default”, esclarece.

Outro ponto apontado por Irapuã que causa o afastamento dos fundos imobiliários é a falta de compromisso mínimo de equity por parte do incorporador. “Então, basicamente, o incorporador tinha um terreno, fazia e aprovava o projeto, começava a vender e utilizava o fundo como garantia para finalizar a obra. Os projetos estavam sendo realizados com obras 100% alavancadas pelos FIIs. O mercado financeiro aprendeu a não fazer mais isso”, completa o executivo da CVPar.


Executivos apontam meios da multipropriedade se reaproximar e gerar credibilidade com os FIIs

Apesar deste distanciamento dos fundos imobiliários, o vice-presidente de Turismo da ADIT Brasil enxerga o modelo de multipropriedade ainda sólido e com boas perspectivas para uma reaproximação. “O desafio está na assimetria entre o fluxo de recebimento e o custo de capital”, salienta ele.  “A multipropriedade continuará sendo um mercado atrativo enquanto seguir atendendo à expectativa dos compradores e fortalecendo sua governança para atender ao padrão esperado pelos financiadores”,  A ADIT aponta alguns pilares para fortalecer essa atratividade:

  • Planejamento robusto – Business plans auditáveis, com estudos de mercado atualizados, projeções realistas de VGV e curvas de vendas que mantenham o índice de cancelamentos em níveis controlados.

  • Governança de obra e carteira – Contas-garantia auditadas, comitês técnicos para revisão de orçamentos e cronogramas, além de KPIs que permitam monitoramento constante da saúde do projeto.

  • Capital próprio e co-investimento – Estruturar fases iniciais com equity dos sócios e parceiros estratégicos, sinalizando comprometimento (skin in the game) e fortalecendo a confiança para captar novos fundos.

  • Operação hoteleira consistente – Administradoras com track record no shared ownership, bandeiras reconhecidas e oferta de experiências que sustentem a percepção de valor do empreendimento.

  • Padronização jurídica – Uso pleno da Lei 13.777/18, com matrículas segregadas, regras claras e compliance que facilitem a futura securitização das carteiras.

“Essas medidas reduzem o risco percebido e melhoram a confiança de bancos e investidores, especialmente os que não conhecem a fundo nosso setor”, cita Alejandro Moreno.

A Brava Capital avalia que a credibilidade virá com consistência, transparência e resultados. Para Jair Lemes, o mercado de multipropriedade deve evoluir em alguns aspectos, como governança e compliance; contratos mais claros e transparentes, que facilitem a análise de risco e a securitização; e estruturas que permitam a entrada de fundos de investimento, com garantias reais, cláusulas de saída e métricas de performance bem definidas. “’Com esses avanços, a multipropriedade pode se consolidar como uma classe de ativo legítima e atrativa dentro do portfólio de investimentos estruturados’’.

A ADIT Brasil também reforça que a entrega dos empreendimentos é a melhor resposta da multipropriedade para o mercado financeiro. “Projetos concluídos dentro do prazo e do orçamento são o melhor cartão de visitas para atrair confiança — tanto de investidores quanto de consumidores”, afirma Alejandro Moreno.

De forma geral, é possível afirmar que há fundos de investimento imobiliário para projetos de multipropriedade, mas o capital não está disponível para todos. O setor deve continuar sua curva de aprendizagem e amadurecimento, trazendo planos de negócios bem estruturados, comprovando o equity do empreendedor, entregando os empreendimentos, fortalecendo a governança, a transparência, a estruturação jurídica, o relacionamento com clientes e evoluindo nos modelos de marketing, vendas e pós-vendas.


Gestoras continuam aportando capital na multipropriedade

Jair confirma que a Brava Capital conta com operações de multipropriedade em andamento, com  foco em projetos que combinam multipropriedade com modelos tradicionais de incorporação, sempre com estruturação jurídica robusta, garantias bem definidas e gestão profissionalizada. “A Brava tem atuado como estruturadora e investidora, inclusive por meio de fundos que oferecem mecanismos de proteção e retorno assimétrico para os investidores’’.

A CVPar também mantém forte interesse na multipropriedade. Irapuã revela que, recentemente, a empresa estruturou o financiamento de um projeto em que o incorporador entrou com 60% de comprometimento de equity e a gestora com 40% do capital para obras e o FF&E. ‘’O mercado continua aberto, mas agora quer bons operadores e não aventureiros. Quer um incorporador que se comprometa com o equity. Isso, de certa forma, é bom para o setor. Não estou dizendo que o equity tem que ser de 60% do valor do investimento, mas não pode entrar na operação 100% alavancada. Eu diria que o incorporador tem que investir pelo menos de 30% a 40% de equity no negócio”.


Hot Beach conta experiência com fundos imobiliários

O primeiro CRI do Hot Beach foi realizado antes da aprovação da Lei 13.777/18, em uma fase em que os fundos estavam tentando entender a multipropriedade. ‘“No complicado ano de 2018, sem opções de concorrência na oferta, sem legislação, sem experiência contratual, com prazos de entrega a cumprir, estava lá a tempestade perfeita. Na sequência, havia uma pandemia a caminho”.

Sem muito entendimento do modelo de multipropriedade e visando à segurança dos cotistas, o principal questionamento do fundo imobiliário era em relação às garantias para realizar a operação. “O ritmo das vendas, o volume e consistência dos recebíveis, a inadimplência e o cronograma das obras completavam o quadro”, conta o CEO do Hot Beach. “Todas as dificuldades negociais do primeiro CRI do HBS só foram resolvidas com o pré-pagamento”.

Apesar do Grupo Ferrasa ter um extenso histórico de obras entregues, com mais de 40 anos de atuação no mercado imobiliário, e contar com três empreendimentos hoteleiros em operação — inclusive já tendo feito operações com fundos imobiliários anteriormente, como o FIDIC —, o FII ainda avaliou a operação da multipropriedade como arriscada. “Apesar da sólida trajetória no setor imobiliário, os desafios enfrentados na multipropriedade foram semelhantes aos de empresas iniciantes, dada a novidade do modelo para o mercado financeiro”, avalia Sérgio Ney.

Para ele, o momento ideal para iniciar as tratativas com fundos imobiliários é ainda na fase de planejamento do empreendimento. ‘“Mesmo sem contratos formalizados, conversas preliminares com potenciais financiadores são fundamentais para garantir agilidade e segurança no processo”.

Já para o segundo empreendimento de multipropriedade, o Hot Beach You, o Grupo Ferrasa analisou outros tipos de operações financeiras, mas optou novamente pelo CRI — avaliando melhor os fundos imobiliários para fechar a negociação. “Uma segunda operação, com fundos mais qualificados, está finalizando dentro do programado. A grande lição aplicada para o HBY foi, sem dúvida, a escolha de financiadores éticos e profissionais”, conclui Sérgio Ney.


Fonte: Turismo Compartilhado