Multipropriedade ganha tração e atrai milhões em novos investimentos, incluindo alto padrão

Mercado cresce e ultrapassa número de 1,2 milhão de cotas, impulsionado pelo setor de turismo

Resort em Pirenópolis tem varanda, bar, SPA, academia, salão de jogos, espaço pet quadras de vôlei e tênis Foto: Divulgação/GAV Resorts

Enquanto vive um processo de amadurecimento no Brasil, o mercado de multipropriedade atrai investimentos milionários e ultrapassa o número de 1,2 milhão de cotas lançadas, segundo relatório da Caio Calfat Real Estate Consulting. Impulsionado por uma legislação mais segura, o setor assiste ao nascimento de projetos grandiosos que se multiplicam com a expectativa de atrair a classe média e o público de alto padrão para destinos consagrados.

Fruto desse ambiente, a GAV Resorts, empresa que já lançou 13 empreendimentos no Brasil, planeja investir mais de R$ 517 milhões em dois novos projetos este ano, um no Nordeste e outro no Sul do País. Além disso, a companhia deve fechar o ano com dois produtos finalizados. Um deles, o Pyrenéus Residence, em Pirenópolis (GO), foi entregue em julho.

Com 150 apartamentos, quase 12 mil metros quadrados construídos e um investimento de R$ 150 milhões, o projeto nasceu com 3,9 mil cotas. O preço dessas frações é R$ 58 mil e, segundo a companhia, 70% das unidades já foram vendidas. O comprador tem direito de usufruir da unidade e dos serviços disponíveis no resort por duas semanas no ano.

O outro empreendimento que será inaugurado pela GAV Resorts este ano é o Porto 2 Life Resort, em Ipojuca (PE), na região do Porto de Galinhas, que será o maior empreendimento da companhia até hoje. Com 990 apartamentos e 62 mil m² construídos, o projeto tinha 27.040 cotas à venda por R$ 67 mil. Todas já foram vendidas, sendo que 90% dão direito a duas semanas e 10% a uma semana de uso por ano.

“A pandemia mudou a percepção da multipropriedade como algo supérfluo. As pessoas estão dando mais valor à segunda residência e ao lazer. Estamos passando por uma transformação cultural e o preconceito com a modalidade está cada vez menor”, analisa Manoel Vicente Pereira Neto, CEO da GAV Resorts.

Economia da propriedade compartilhada

O estudo Cenário do Desenvolvimento de Multipropriedades no Brasil, realizado pela Caio Calfat Real Estate Consulting, indica que existem 216 empreendimentos de multipropriedade no País. Ao todo, o setor tem um VGV potencial de mais de R$ 92 bilhões.

Segundo o levantamento, 51 empreendimentos estão no Sudeste, 68 no Sul e 63 no Nordeste. “A multipropriedade tem a capacidade de gerar estímulos. Quando comparada a outras modalidades de segunda propriedade, nenhuma teve um crescimento tão significativo, de forma tão rápida e tão espalhada pelo País”, afirma Caio Calfat, o fundador da consultoria.

Ainda que seja um mercado considerado supérfluo, este modelo sobreviveu à recessão de 2014 e à crise da pandemia, analisa Calfat. O estudo mostra que o segmento ainda é muito vinculado à classe média, com mais de 40% dos compradores dentro do recorte de 5 a 10 salários mínimos. “Basicamente casais jovens com filhos pequenos”, sintetiza o executivo. Apenas 4,3% ganham mais de 30 salários mínimos.

Apesar disso, projetos de alto padrão começam a ganhar espaço no segmento. Este é o caso do My Door, empresa que negocia casas compartilhadas em destinos de lazer. Fundada por Roberto Pinheiro, ex-Gafisa, a companhia possui mais de 30 imóveis espalhados pelo litoral norte de São Paulo, Bahia e do Ceará. As unidades são negociadas para um número de dois a até oito sócios.

“O tempo médio de utilização da segunda residência no Brasil é de 40 dias por ano, então este é o prazo mínimo. A quantidade de cotas varia de acordo com a proximidade de grandes centros. Se o imóvel está a 40 minutos de carro de São Paulo, naturalmente acabamos dividindo por menos pessoas, para que eles tenham mais dias. Já em destinos mais distantes, a gente divide mais”, sintetiza Pinheiro.

A MyDoor também oferece flexibilidade para as cotas: as semanas a que o proprietário tem direito não são travadas. Ou seja, o sócio pode utilizar seus dias de forma fracionada ao longo do ano até que se esgote o saldo. Para isso, ele tem um aplicativo e um concierge que auxilia nesta gestão.

Foco no alto padrão

Os sócios que comprarem cotas de imóveis negociados pela MyDoor possuem acesso a um concierge que prepara o imóvel para recebê-lo nos dias de uso. “Se ele quiser um sushiman ou um churrasqueiro, a gente traz. Compramos a cerveja que ele preferir e montamos as experiências de acordo com o desejo do cliente. Até a reserva de um restaurante na região é possível solicitar”, explica Pinheiro.

O executivo também destaca que o modelo adotado pela companhia se diferencia do método tradicional de multipropriedade. “Quando lançamos um novo empreendimento, criamos uma sociedade para titularizar a propriedade da casa, que permanece sob a administração da MyDoor. Ao comprar uma fração, o morador se torna acionista dessa sociedade, com participação equivalente à fração adquirida”.

Atualmente, o preço das cotas das unidades da MyDoor varia de 400 mil a R$ 4 milhões. Na visão do executivo, o cenário está favorável para o avanço deste tipo de empreendimento porque o comportamento do público de alto padrão está mudando. É uma quebra de paradigma. A ideia de propriedade compartilhada passou a ser melhor aceita“, diz.

“Antes, era inconcebível pensar em um apartamento de mais de 80 metros quadrados sem vaga de garagem. Hoje, está tão fácil usar bicicleta, patinete ou carro compartilhado que várias famílias já não têm carro”, comenta Pinheiro. “As pessoas ficam em hotel e são adeptas do Airbnb. Mesmo quem tem muito dinheiro sabe que compartilhar é mais eficiente e inteligente”, afirma Pinheiro.

Destino turístico

O turismo brasileiro está viajando de primeira classe e faturou quase R$ 108 bilhões só no primeiro semestre de 2025, de acordo com levantamento do FecomercioSP, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na tentativa de trafegar pela mesma rota, o Amazon Parques & Resorts nasceu de um investimento milionário para atrair turistas para a cidade de Penha, em Santa Catarina (SC).

Localizado na cidade a cerca de 40 quilômetros de Balneário Camboriú e a sete minutos do Parque Beto Carrero World, o Amazon Parques & Resorts prevê a construção de três torres, além de 9 mil metros quadrados e uma piscina de 420 m². Com o selo da Wyndham Hotels & Resorts, o empreendimento deve ser entregue no final de 2026.

A depender da tipologia do quarto, os preços variam de R$ 30 mil a R$ 90 mil para períodos de uma a duas semanas. Os 200 apartamentos disponíveis para compra no modelo de multipropriedade se somam a 420 leitos para turistas que desejarem se hospedar no resort.

“Você paga a mensalidade por um período e tem o direito de usar durante toda a sua vida”, sintetiza Roberto Kwon, CEO do projeto. Ao todo, 7 mil cotas foram colocadas à venda e, segundo o executivo, 60% já foram vendidas. Kwon afirma que o investimento de R$ 100 milhões foi realizado com a certeza de que a Penha vai se consolidar no roteiro fixo de viagens dos brasileiros.

Não à toa, a empresa já planeja o lançamento de novos projetos de multipropriedade na cidade nos próximos anos. “Tem muita gente que não vê o potencial da modalidade, mas é um mercado em crescimento”, comenta. E este otimismo, compartilhado também pelos outros empresários, é embasado na sustentação jurídica que o segmento ganhou há menos de uma década.

Aspectos legais e amadurecimento do mercado

No final de 2018, a lei da multipropriedade regulamentou o modelo de uso compartilhado de imóveis. Até então, a modalidade já existia no País, mas não tinha regras específicas. A partir da legislação, cada coproprietário passou a ter registrado em cartório o seu direito de utilizar o imóvel por um período.

Essa fração de tempo pode, então, ser vendida, alugada ou transferida, conforme explica a advogada imobiliária Luciana Nandini, sócia do MVT Law Advogados. “Écomo um condomínio, em que cada proprietário de imóvel têm direito a sua matrícula”, ilustra. “E, quando falamos em matrícula, via de regra, estamos falando de possibilidade de financiamento imobiliário”, acrescenta.

Ao profissionalizar os empreendimentos e aumentar a confiança dos investidores, ela entende que a regulamentação no Código Civil trouxe famílias que não olhavam para a prática com tanto apreço. “A narrativa da multipropriedade está mudando. Ao invés de ter um pedacinho do imóvel, o comprador entende que está fazendo parte de um clube”.

Desconfiança e rentabilidade

Mas nem tudo são flores. Não é raro que empresas especializadas em multipropriedade acumulem críticas, processos judiciais e reclamações movidas pela insistência dos vendedores na negociação das cotas e dificuldades de distrato. Não à toa, empresas que seguem o modelo de multipropriedade se esforçam para propagar e se encaixar em eufemismos como “economia compartilhada” ou “propriedade compartilhada”.

O consultor Caio Calfat, porém, alega que as críticas são proporcionalmente circunstanciais. “A visão de que muitos compram por impulso e se arrependem não se vê na prática”, afirma.

Ainda assim, segundo o estudo conduzido pela sua consultoria, a inadimplência no setor saltou de 5% para 8% no último ano.

Os estoques também estão altos. De acordo com o levantamento, variam de 45% a 50% no setor. Os empreendimentos com cota acima de R$ 80 mil estão, na média, com quase 70% de estoque. Ou seja, a velocidade média de venda do setor está abaixo das expectativas.

Outro ponto que ele combate é a ideia de que uma cota de multipropriedade possa ser encarada como um investimento. “Assim como ocorre na segunda moradia, o comprador dificilmente estará fazendo um bom negócio financeiro. O mercado primário ainda é muito novo, portanto dificilmente o comprador terá um alto valor de revenda no mercado secundário”, comenta.

“Pode ser que daqui a cinco anos, a situação mude. Mas hoje, se você comparar com outros produtos de investimentos, no mercado de capitais ou imobiliários, vai ver que a maioria é mais interessante financeiramente do que a multipropriedade”, acrescenta. “O foco principal do comprador deve ser no lazer, nas férias e na experiência”.


Fonte: Estadão