Do boom à saturação: qual o futuro da multipropriedade no Brasil?

Nos últimos 10 anos, a multipropriedade viveu um verdadeiro boom no Brasil, impulsionado pelo apetite de incorporadoras e redes hoteleiras em oferecer uma nova forma de acesso ao turismo. A modalidade, que promete férias recorrentes em imóveis de alto padrão com custos compartilhados, conquistou consumidores ávidos por alternativas flexíveis de lazer. Mas, com a enxurrada de lançamentos, cresce a dúvida: o mercado está se consolidando ou caminhando para uma saturação que pode comprometer a credibilidade do modelo e gerar desconfiança entre compradores?

Para entender melhor esse cenário, a reportagem do Hotelier News conversou com especialistas do setor. O objetivo: ouvir quem realmente conhece a dinâmica da multipropriedade no Brasil e descobrir se o modelo ainda tem espaço para crescer ou se corre o risco de esgotar seu potencial diante da enxurrada de lançamentos.

Caio Calfat, diretor da Caio Calfat Real Estade Consulting, destaca que o que mais se percebeu nos últimos levantamentos sobre o segmento é que o setor de multipropriedade permite que seja sejam desenvolvidos empreendimentos de diversos perfis, o que contribui para o crescimento sustentável do modelo.


“Um exemplo disso são as propriedades de alto luxo, que oferecem experiências diversas e exclusivas para o proprietário. Além disso, cabe lembrar que a multipropriedade se mostra adaptável a vários tipos de negócio, e a estilos de vida distintos. Por mais que haja, sim, a possibilidade de saturação em destinos já conhecidos, como Gramado (RS), há novos lugares sendo descobertos e possibilidade de crescimento em cidades já convencionais para o segmento, como Olímpia (SP), Caldas Novas (GO) e Foz do Iguaçu (PR)”, diz o executivo.

Calfat explica que, a partir do momento em que há uma área grande, desenvolve-se um novo mercado, que vai possuir hotéis, multipropriedade, lojas, restaurantes, entre outros atrativos turísticos.

“Comparado com a hotelaria tradicional, o ciclo de investimentos da multipropriedade cresceu consideravelmente mais, justamente por essa capacidade de adaptação. Temos 216 empreendimentos em 90 cidades do país. O último grande boom da hotelaria aconteceu antes da Copa do Mundo de 2014, e de lá para cá diminuiu significativamente. Neste período, passamos por duas grandes crises e precisamos descobrir novos destinos. Nosso segmento cresceu e a hospitalidade tradicional não teve a capacidade de acompanhar este movimento”, conclui.

Analisando o cenário

João Cazeiro, diretor de Desenvolvimento de Novos Negócios da Livá Hotéis & Resorts, pontua que atualmente a multipropriedade passa por um processo de maturação, e que já visualiza um importante desafio à frente: captação de fundos para viabilizar novos produtos.

“Tivemos um período muito positivo, com captações importantes e dinheiro ofertado. Hoje, o cenário é outro, com o acesso ao crédito cada vez mais difícil. Ainda assim, se formos falar de produto, temos muito que agradecer à multipropriedade. Há 10 anos, não tínhamos tantos resorts no Brasil, por exemplo”, observa o executivo.

Ele endossa que esse movimento contribuiu para desenvolver diversos destinos, e cita Olímpia como exemplo. “Há 12 anos, não havia hotéis no destino. E o mesmo aconteceu com outras cidades, que hoje são cases de desenvolvimento neste modelo”, pontua.

Cazeiro projeta que o setor deve continuar crescendo, mas em um ritmo menos intenso em comparação com os últimos anos, por alguns fatores de risco, como saturação de destinos e concentração de empreendimentos.

“Os maiores destinos de lazer já têm um grande número de empreendimentos tanto de multipropriedade, quanto tradicionais. Criar um destino do zero é muito complexo e caro, porque requer grandes desembolsos, além de depender de fatores como ciclo turístico, variações macroeconômicas, entre outros”, analisa.

Quanto ao ciclo de investimentos, ele avalia que a multipropriedade sai na frente devido à sua capacidade de criar nichos e produtos para diversos públicos, como apreciadores de vinhos, esportes, wellness, entre outras opções.

“Por outro lado, se analisarmos mais a fundo, vemos que a hotelaria tem, hoje, uma boa oportunidade de investimento, porque não temos oferta, mas a demanda está lá, crescendo em diversas praças estratégicas. O desafio está em conceber esses empreendimentos, porque os investidores não querem apostar em projetos greenfield. Na multipropriedade é diferente: os empreendimentos foram feitos para serem usados. Quem compra, quer aproveitar, e dessa forma não há risco de termos ativos estressados como na hotelaria”, afirma.

Em relação a perspectivas para a multipropriedade, Cazeiro salienta que ainda há oportunidades em praças como o interior de São Paulo e Santa Catarina. “Hoje, nosso segmento é baseado na entrega. É ela que define a experiência e, consequentemente, o crescimento”, diz.

Perspectivas

Fabiana Leite, diretora de Desenvolvimento de Novos Negócios da RCI, afirma que o crescimento sustentável do negócio deve se manter a médio e longo prazo, porque trata-se de um mercado novo no Brasil.

“A lei garante ao incorporador e consumidor uma base sólida. Obviamente, há ajustes que vão precisar ser feitos durante esse período, mas tudo é uma questão de planejamento, organização e, principalmente, entender a viabilidade de um produto antes de entrar em um destino”, pontua.

A executiva ressalta que o risco de saturação existe em destinos já consolidados, o que ressalta a necessidade de que as cidades se adaptem aos produtos de multipropriedade. “Olímpia tinha um parque e começaram a construir empreendimentos neste modelo. Hoje, a empresa está em seu terceiro projeto. Então, tudo depende do empreendedor querer desenvolver o destino”, explica.

Além disso, Fabiana diz que propostas diferenciadas na concepção dos produtos são divisores de águas para garantir o crescimento sustentável do setor, visto que “brigar” com empreendimentos iguais eleva o risco de saturação do mercado.

“Hoje, vemos produtos de luxo tendo uma nova visibilidade, e o Brasil ainda é pouco explorado, com muitos destinos interessantes ainda sem projetos de multipropriedade. Se olharmos de maneira geral, a hotelaria tradicional começa a ver seu retorno financeiro quando começa a entregar as diárias. Já na multi, esse retorno começa a acontecer no momento da venda, ou seja, há uma capitalização antecipada, o que favorece o segmento”, diz.

Ela acrescenta que, no Brasil, ainda há espaço para crescer, principalmente porque o país aderiu ao modelo depois de grandes mercados globais, como EUA. Segundo Fabiana, esse “atraso” foi positivo para obter referências de como entregar o produto ao cliente.

“Uma multipropriedade, depois de pronta, pode se tornar um timeshare. São produtos que se conversam e que acompanham o ciclo de vida do cliente. Há essa possibilidade de junção de produtos, o que a hotelaria tradicional não entrega”, salienta.

Potencial de crescimento

Manoel Pereira, CEO da GAV Resorts, acrescenta que, no Brasil, o negócio de multipropriedade está apenas começando. “O produto está amadurecendo ainda, e agora está começando a ter entregas de produtos de qualidade, gerando novas experiências”, diz.

Ele avalia que os primeiros empreendimentos do modelo não tinham a qualidade que o segmento espera e, segundo o executivo, é isso que vai fazer o negócio se consolidar: a busca pelo aprimoramento na entrega.

“A multipropriedade melhora a sazonalidade do destino. Em Pirenópolis (GO), por exemplo, o cliente se programa, usa a semana, e a cidade passa a ter uma vida em dias que anteriormente não tinha. É um modelo bem sustentável”, avalia.

Para ele, a o crescimento da multipropriedade passa por dois fatores específicos: boa localização e experiência memorável. “Para um produto bom, não há concorrência. Sempre vai haver solidez. O diferencial é saber gerar recorrência para estes lugares. Tudo isso tem que ser avaliado desde o primeiro momento da concepção do empreendimento”, lembra.

Indo na contramão dos colegas de mercado, Pereira diz que não há saturação se a escolha do destino for assertiva. Ele pontua que em cidades menos procuradas, isso pode acontecer, mas que, de modo geral, o mercado se ajusta e volta a gerar demanda. “Esses destinos consolidados vão passar por um amadurecimento. Mas isso é diferente de saturação”, completa o CEO da GAV Resorts.

Ele também cita Salinópolis (PA), como exemplo. O executivo explica que o destino foi criado praticamente do zero, e hoje possui quatro empreendimentos da companhia. Hoje, a cidade chegou a um ponto de equilíbrio, com crescimento de 10% ao ano, o que cria uma necessidade de pausar os lançamentos, para que o destino passe por seu processo de maturação.

“O Brasil é um país de custos muito altos. A multipropriedade bem estruturada contribui significativamente para o crescimento do turismo. Diferentemente da hotelaria tradicional, em que o cliente não retorna se não gostar, a multi precisa de recorrência. Assim, as empresas se sentem obrigadas a gerar experiências memoráveis em seus produtos. Caso contrário, haverá desistência e quebras de contrato. A venda é só o começo do ciclo. O que consolida o negócio é a experiência”, finaliza.

(*) Crédito das fotos: Divulgação

Fonte: Hotelier News