Hotelaria reencontra o caminho

Recuperação do turismo pós-pandemia devolve o vigor às empresas de todo o setor e consolida o mercado de multipropriedade como novo motor da indústria do lazer

 

"Como manda a cartilha da hospitalidade, tudo precisa funcionar de forma perfeita. Cliente satisfeito nunca deixa de voltar” Sergio Ney Padilha Garcia, CEO Grupo Ferrasa. (Crédito: Claudio Gatti )

 

Por Hugo Cilo

Num dos mais movimentados parques aquáticos de Olímpia (SP), o Hot Beach, dois personagens são vistos com impressionante frequência no lobby dos hotéis, nos restaurantes e nas piscinas. Um é o mascote Guarani, animador oficial da criançada que visita o resort. Outro, o empresário Sergio Ney Padilha Garcia. Como CEO do Grupo Ferrasa, holding que controla o complexo turístico, o simpático e sorridente Padilha, de bermudas e chapéu Panamá, acompanha de perto toda a operação da companhia. Junto do sócio Diego Ferrato, diretor e herdeiro da empresa, ele conversa com funcionários, recepciona visitantes e faz o checklist de erros e acertos. “Como manda a cartilha da hospitalidade, tudo precisa funcionar de forma perfeita”, afirmou Garcia, em entrevista à DINHEIRO. “Cliente que vai embora satisfeito nunca deixa de voltar.”

A lógica de Garcia faz todo sentido. No ano passado, o Hot Beach superou a inédita marca de 1 milhão de visitantes, crescimento de 23% sobre 2021 — ano em que já não havia restrições da pandemia para o setor hoteleiro. O faturamento de 2022 atingiu R$ 380 milhões e ficou 36% acima do ano anterior. Os resultados se mostraram em linha com o desempenho geral da indústria brasileira do turismo, que cresceu 34,5% de janeiro a outubro do ano passado (último dado disponível), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

O sorriso e a onipresença de Garcia não se justificam apenas pela retomada do turismo pós-pandemia. Eles demonstram o entusiasmo do executivo com um novo filão do mercado de turismo: a multipropriedade. O nome soa estranho, mas a explicação é simples. Grandes grupos hoteleiros têm aprendido a vender quartos, em vez de apenas diárias de hotel. Trata-se de oferecer uma fração de um mesmo apartamento para até 26 famílias, que poderão usufruir do empreendimento em algumas das 52 semanas do ano. Com isso, Garcia consegue vender um imóvel de 45 m² a 67 m² por até R$ 1,1 milhão — em um município onde um apartamento semelhante, no centro da cidade, não custa mais do que R$ 250 mil.

 

HOT BEACH, EM OLÍMPIA Um dos maiores complexos turísticos do País, que terá 45 mil quartos e vários parques aquáticos, tem recebido grandes cifras de investimentos imobiliários voltados ao lazer e ao entretenimento. (Crédito:Divulgação)

 

O setor de multipropriedade lançou R$ 41,1 bilhões em Valor Geral de Vendas (VGV) no ano passado. O Grupo Ferrasa contabilizou 60% de todo o seu faturamento com a modalidade. “A recuperação do turismo está em velocidade máxima e a multipropriedade é o motor desse crescimento”, afirmou Garcia, que projeta atingir receita superior a R$ 420 milhões neste ano. Isso porque além do Hot Beach Suítes, já entregue, a companhia está construindo o Hot Beach You, megaempreendimento de 800 apartamentos em sete blocos e potencial de mais de 20 mil frações. Depois de totalmente concluído, em 2027, o complexo terá gerado cerca de R$ 800 milhões para os cofres do Grupo Ferrasa.

Estatísticas do setor de multipropriedade endossam essa avaliação. Levantamento da Caio Calfat Real State Consulting, principal entidade desse segmento no País, mostra que o número de empreendimentos passou de 128 em 2021 para 156 no ano passado, alta de 21,8%. Em termos de receita, isso representou VGV 45% maior, de R$ 28,3 bilhões para R$ 41,1 bilhões, com 767,4 mil frações vendidas. Para este ano, a projeção é repetir o crescimento, de 28% sobre 2022. “A multipropriedade sustentou em pé os grandes grupos hoteleiros durante a pandemia, quando as receitas caíram a zero, e será a principal fonte de receita e de investimentos nos próximos anos para as empresas”, afirmou Caio Calfat, fundador e CEO da consultoria que leva seu nome.

ORLANDO BRASILEIRA Os números do Hot Beach exemplificam a performance da recuperação do turismo e a força do segmento de multipropriedade, mas eles estão longe de ser um fato isolado. Lá mesmo em Olímpia, o executivo Rafael Almeida, CEO do grupo goiano Natos, está capitaneando a construção do maior complexo de multipropriedade do País atualmente. O Solar das Águas Park Resort e o Solar das Brisas receberam R$ 515 milhões em investimentos e terão, quando concluídos neste ano, VGV total de R$ 1 bilhão. O empreendimento, na cidade que terá já neste ano 45 mil quartos de hotel, poderá receber até 6 mil hóspedes em seus 1 mil apartamentos. “Tivemos em 2022 o melhor ano de todos. Uma demanda que nunca tinha visto”, disse Almeida. No ano passado, pelas contas dele, 75% do faturamento de R$ 400 milhões do grupo veio das receitas da multipropriedade. “Estamos ajudando a construir o que será reconhecido como a Orlando brasileira.” O empreendimento, que tem a gestão hoteleira da Enjoy Hotéis & Resorts, possui quatro torres de 17 andares e apartamentos de até 77 m² mobiliados, além de uma extensa lista de itens de lazer.

RAFAEL ALMEIDA CEO do Grupo Natos está à frente do maior projeto de multipropriedade no País, um complexo de R$ 1 bilhão de VGV em Olímpia, no interior paulista.

Foto: Marco Ankosqui

O fenômeno da multipropriedade, combinada com o reaquecimento do turismo, tem feito prosperar também cidades como Gramado, no Rio Grande do Sul, e Caldas Novas, em Goiás, região onde está o mais tradicional parque aquático do País, o Rio Quente Resorts. O Grupo Aviva, que controla o complexo do Rio Quente e o Costa do Sauípe, na Bahia, atingiu faturamento de R$ 720 milhões em 2022 e deve, segundo o CEO Alessandro Cunha, alcançar o R$ 1 bilhão neste ano, mesma cifra contabilizada em 2019, antes da Covid. “Retomamos nossos projetos de modernização dos parques e hotéis, além dos projetos de multipropriedade que foram suspensos durante a pandemia”, afirmou o executivo, que teve de demitir, no auge das restrições ao setor hoteleiro, em 2020, metade dos 4,2 mil funcionários da empresa. “Felizmente, a gente renasceu graças à retomada do setor, à força do nosso clube de férias e ao programa ‘escritório na praia’, voltado aos clientes que estavam em home office”, disse Cunha. Tudo isso, segundo ele, gerou receita constante nos meses em que o restante do faturamento foi a zero. Com isso, o Grupo Aviva elevou a taxa de ocupação acima de 60% no ano todo e recuperou boa parte das vagas de emprego que tinham sido fechadas.

Gramado, cartão-postal da Serra Gaúcha, é outro destino que tem recebido grandes empreendimentos de multipropriedade, inclusive no setor de luxo — o que parece contraditório com a proposta de imóveis compartilhados. Com 56 quartos e investimento na casa dos R$ 50 milhões, o Laghetto Château foi inaugurado em 2022 para ser o primeiro hotel boutique que opera no sistema de multipropriedade do País. Construído num terreno de 10 mil m2 que antes servia como rampa para saltos de asa-delta, a vista para o Vale do Quilombo é um dos maiores atrativos do local. O empreendimento se soma aos mais de 200 hotéis e 20 mil leitos de Gramado, segundo a Secretaria de Turismo. A cidade foi a segunda mais procurada entre os viajantes brasileiros para as férias de julho do ano passado, atrás de Campos do Jordão (SP).

 

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“Felizmente, a gente renasceu graças à retomada do setor, à força do nosso clube de férias e ao programa ‘escritório na praia’, voltado aos clientes que estavam em home office” Alessandro Cunha CEO da AViva.

Nessa mesma pegada de luxo compartilhado, o ex-presidente da GJP (empresa de Guilherme Paulus, fundador da CVC), Fabio Godinho criou a startup MyDoor. A empresa oferece residências de alto padrão, de olho em quem busca experiência de hospedagem exclusiva, sem ter que comprar integralmente um imóvel de veraneio. O mais recente lançamento de casas foi na Praia do Forte, no litoral baiano. As residências estão localizadas nos condomínios Ilha dos Pássaros, Piscinas Naturais, Ipês e Praia Bella, cada uma com cinco ou seis suítes, sendo comercializadas por meio de cotas a partir de R$ 550 mil.

A proposta da MyDoor é o fracionamento na compra da segunda residência, o imóvel para lazer ­— que normalmente não pode ser financiada em bancos tradicionais. Cada moradia MyDoor pode ter até oito compradores, sendo que cada um terá direito a adquirir no máximo quatro cotas por imóvel, cada uma correspondendo a 44 dias de uso ao ano. A startup também oferece serviços exclusivos e personalizados aos clientes, que podem vivenciar as melhores experiências regionais via agendamento on-line, com serviços fixos como concierge, governanta, limpeza, manutenção e conservação do imóvel, além de serviços opcionais, como aulas de ioga, massagens, contratação de chef de cozinha, babá, motorista, churrasqueiro e até reservas em restaurantes. A capacidade de reduzir a sazonalidade do turismo é um ponto forte e atraente da multipropriedade para os grupos hoteleiros.

O direito de uso dos imóveis por diversas famílias mantém ocupados os hotéis e parques em qualquer estação do ano, faça chuva ou faça sol. Desde o segundo semestre de 2022, segundo dados da Caio Calfat, o porcentual de ocupação se mantém acima de 90%, em média, graças ao compartilhamento dos imóveis. Antes, esse resultado só era possível em verões e férias escolares, períodos conhecidos como alta estação.

O conceito de multipropriedade — junto dos modelos de clube de férias e timeshare — que empolga os empresários do setor é uma fórmula já bem conhecida e experimentada por EUA, Europa e México, que tem Cancún como a meca da hotelaria e do compartilhamento imobiliário. Já no mercado americano, o maior do mundo, a indústria de timeshare possui 1,5 mil resorts, 204 mil apartamentos e mais de 9 milhões de proprietários. Segundo o mais recente estudo State of the Vacation Timeshare Industry, organizado pela American Resort Development Association (Arda), as vendas atingiram US$ 8,1 bilhões em 2022, crescimento de 65%. Em 2019, pré-pandemia, o setor alcançou US$ 10,5 bilhões.

 

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“A hospedagem pura e simples ou o turismo de férias compartilhadas são complementares, não concorrentes” Julia Simpson CEO da Word Travel & Tourism Council.

DIAS DE OURO A presidente do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC, na sigla em inglês), Julia Simpson, afirma que a combinação entre a recuperação do turismo e a popularização da multipropriedade voltada ao lazer em países em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, vão garantir dias de ouro para o turismo global nas próximas décadas. “A hospedagem pura e simples ou o turismo de férias compartilhadas são complementares, não concorrentes”, afirmou a executiva britânica, em entrevista à DINHEIRO. “Não tenho dúvidas de que todas essas modalidades somadas, mais a retomada das viagens a negócios, impulsionarão as economias que investirem pesado em estrutura para o turismo.”

Um termômetro dessa reação do turismo pode ser visto no setor aéreo brasileiro. De acordo com dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), no ano passado, o volume de passageiros em voos nacionais e internacionais foi o maior desde 2020, ano de início da pandemia de Covid-19. No mercado doméstico, foram 82,2 milhões de passageiros, aumento de 31,4% em relação a 2021, e de 81,8% em relação a 2020. Já nos voos internacionais, foram registrados 15,6 milhões de passageiros pagos, alta de 226% sobre 2021. No turismo global, a Organização Mundial do Turismo (OMT) apontou que, neste ano, a movimentação deve atingir entre 80% e 95% dos níveis pré-pandemia.

No Brasil, o setor de turismo deve consolidar sua retomada de crescimento em 2023. No ano passado, esse mercado já registrava indicadores positivos, em patamares pré-pandemia. Segundo a Fecomércio, o faturamento do setor de turismo deve crescer 53,6% neste ano quando comparado com 2022, já considerando a adesão de novos destinos que estão surgindo na cartela de viagens dos consumidores. A entidade explica que essa projeção foi realizada com base nos resultados do terceiro trimestre de 2022, momento no qual mais da metade das empresas entrevistadas afirmou ter elevado em 100% (ou mais) o faturamento, em relação ao mesmo período do ano passado.

 

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“A multipropriedade sustentou em pé os grandes grupos hoteleiros durante a pandemia, quando as receitas caíram a zero, e será a principal fonte de receita e de investimentos nos próximos anos” Caio Calfat, Consultor do setor.

Mas nem só de alegria vive o mundo da multipropriedade. Em um mercado movido pela emoção, o índice de distrato é um grande desafio para as empresas. Dados das empresas do setor, como no Hot Beach, apontam para uma taxa de 50% de arrependimento. O consultor Caio Calfat atribui esse dado à imaturidade das empresas e dos consumidores, que muitas vezes adquirem a fração por impulso sem levar em conta os custos decorrentes dessa aquisição, como taxas condominiais e despesas de operação. “Embora esteja crescendo, o setor de multipropriedade ainda é infantil e imaturo, no sentido da pouca idade”, disse Calfat.

Esse cenário ajuda a explicar o altíssimo grau de reclamações de usuários do setor. Uma das líderes, a WAM Group, com mais de R$ 4 bilhões em projetos em execução, possui nota 4,4 numa escala de 0 a 10 no site Reclame Aqui. A empresa, que não concedeu entrevista, resolve apenas 37,5% dos problemas relatados pelos clientes (dados de 2 de fevereiro). Já a RCI, multinacional do setor e com mais bagagem em gestão de férias compartilhadas, tem no mesmo site nota 8,5 e 87,5% de resolução dos problemas. Arrependimentos e reclamações à parte, o fato é que a multipropriedade chegou para ficar na indústria do turismo. Seja em Olímpia, Gramado, Caldas Novas ou no Nordeste, as férias compartilhadas têm ajudado, e assim vai continuar, a turbinar o setor. De fração em fração, a multipropriedade está enchendo os resorts.